O Príncipe Real no Palácio da Ponta Vermelha (L.M., 1907)
(continuação)
Em verdade, nos anos 30 do século passado, L. M. mais não era do que uma vilória pacata, com pouca população, inclusive na “cidade do caniço” que se estendia para além do Alto Maé, o caminho que leva ao Xipamanine. Neste mar de palhotas cresciam casas de madeira e zinco e mais comummente as palhotas maticadas, bairro de negros e de mulatos, estes os que viviam mais dentro dos usos e costumes africanos que eram praticados pelas mães em cuja cerca cresciam e amaduravam. Acrescente-se que muita dessa população mestiça – nascida da cópula entre brancos, mestiços e indianos com negras – apenas conhecia a mãe que fora derrubada na esteira por outro mulato, por um indiano ou por um branco que deixava à fêmea umas míseras moedas pelo “serviço”.
Daí que um som depreciativo qualificava e agredia os mulatos, i.e., os filhos de brancos e de negras: “filhos de uma quinhenta”, reminiscência que vinha de tempos mais recuados quando a “quinhenta” era o pagamento do serviço sexual, moeda ínfima que no final da época colonial valia cinquenta centavos ($50), metade de um Escudo moçambicano, uma vez que não havia correspondência entre o Escudo do Portugal europeu e insular e o de cada uma das colónias.
Acrescente-se que sempre foi difícil transferir Escudos de Moçambique para a “Pátria Mãe”, excepto em casos particulares, como sejam o gozo de férias graciosas dos funcionários públicos, os $ economizados durante as comissões de serviço militar (nos idos dos anos 60 da centúria passada, era ver como no bairro militar junto à então Rua de Nevala se tentava amealhar uns cobres, colocando nas janelas, à guisa de cortinados, folhas de jornais…!). Mas havia mais…tais como, os registos especiais de que se falava ocasionalmente mas baixando o tom de voz – um “busílis”, se ouvido por quem se esmerava em colher informações para as transmitir à secreta – quando o dinheiro corria em candonga e/ou se faziam aquelas habilidades comerciais negociadas pelo comprador em Moçambique e o vendedor metropolitano: geralmente, uma percentagem sobre o negócio que entrava directamente na conta bancária que o importador estabelecido em Moçambique tinha na capital do Império. De muitos casos ouvi falar e de alguns tenho a certeza porque encontrei por cá alguns desses protagonistas com bons apartamentos, carros de gama alta e fazendo a mesma vida despreocupada que já antes do 25 de Abril de 1974 viviam, tanto lá como cá. Muitas “bocas” ouvi, também, a propósito de gente que se envolveu em política – igualmente, antes e depois – e que…, enfim, já se sabe… como é.
Voltemos – que já é tempo – ao Xipamanine, perdoando-se-me as derivações, naturais em quem escreve como se estivesse à lareira a falar com os amigos e os netos uma estória dos dias felizes e dos tempos de angústia.
Na cidade negra, pelas noites de calores, ouviam-se batuques e é natural que o “putsu”, outras bebidas alcoólicas africanas e a cerveja aquecessem gargantas e corações e excitassem os sentidos. O som quente da batucada, de tão repetido noite após noite já não incomodava os poucos brancos, chinas e indianos que por ali tinham as suas cantinas, lugares onde se vendia um pouco de tudo, se bebiam copos de vinho – “a água de Lisboa” – mesmo que os clientes tivessem a certeza ou pelo menos desconfiassem ter sido temperada com água do Rio Umbeluzi, o rio que abastecia a cidade, distribuida, facturada e cobrada pelos SMAE (Serviços Municipalizados de Água e Electrididade), o organismo que substituiu a Companhia inglesa que funcionou até ao início dos anos 50 do séc. XX.
E que boa era a “água”!
Essa “bondade” decorre, pois, de mais recordações de conversas com alguns negros e mulatos com quem privei e/ou trabalhei; afirmavam eles que pelo menos, se por um lado enricavam descaradamente os donos das “cantinas”, não favoreciam, por outro lado, o apodrecimernto em álcool dos seus irmãos ainda que pobres bebedores dos subúrbios. Não quero e não devo, pois, garantir que o baptismo do vinho possa ser encarado como uma medida salutar e não quero nem devo deixar de afirmar que essa acção – comum do Rovuma à Ponta do Ouro – era fundamentalmente uma extorsão, um estratagema, um entre muitos mais que testemunham a ganância dos “cantineiros”, fossem estes brancos ou indianos. Sempre assim pensei mesmo quando era um miúdo e vivia na Vila Gorjão, um largo “combóio” de casas geminadas, uma construção para habitação de ferroviários junto da cerca da área dos Caminhos de ferro, a caminho de uma das saídas da cidade. Certo certíssimo é que nada é indiscutível, tal como nada é totalmente verdadeiro quando se fala da nossa vida e da vida dos aoutros. Basta o fumo de um cigarro para alguém criar, de imediato, o cenário do cogumelo provocado por uma explosão atómica, uma das imegens terríveis da minha meninice.
O correr dos anos vai vergando o espírito à força imperiosa das lembranças e das saudades que nos acometem. É que não há como impedi-lo, a menos que se tenha a capacidade de mergulhar numa escuridão total tudo quanto foi vivido, os liames e as raízes vividas noutros tempos e noutras latitudes. Será possível que assim aconteça? Será que tudo quanto nos liga aos tempos idos é incolor, inodoro e insípido? Haverá quem acredite em tal desvario?
Já adulto, falando com um amigo, de raça negra, um colega no escritório da petroleira em que trabalhei dezassete desesperantes anos, deu-me ele a versão com um sorriso subtil a versão que ouvira, por sua vez, de um cantineiro: o acrescento de água às pipas de vinho tinha sido um bem, apesar de não passar de fruto da ganância, muito longe de uma “protecção” da saúde dos consumidores do produto, tão ardorosos no emborcar da bebida como os profissionais do copo portugueses; bebiam e bebiam até que o corpo acabasse por bambear e caísse ao chão feito embrulho desmanchado.
As imagens das práticas “borrachantes” e da facilitação do emborrachamento remetem-me para um Relatório de Obras Públicas e Outros Documentos das Possessões em África, 1876-1881 onde, a dado passo, se pode ler a recomendação espantosa que se fazia a propósito do recrutamento de pessoal negro para as obras da construção do Caminho de Ferro de Angola: “… assim o melhor comércio será aguardente, com preço elevado, a que o preto não resiste e lhe será vendida só uma vez por semana, aos domingos por exemplo, para lhes dizimar o dinheiro sem lhes prejudicar a saúde…”. Apesar de se tratar de um relatório respeitante à colónia da costa ocidental africana, crê-se, absolutamente, que outros não seriam os conceitos aplicados a Moçambique, mesmo que o relatório Moçambique de António Enes, datado de 18..?, propusesse a criação de regras muto restrictas para a produção de bebidas “inebriantes” e a aplicação de multas severas a quantos as não cumprissem, por ventura, para defesa do comércio do vinho português, uma das mais volumosas produções nacionais. Assim, no capítulo XXXIX, António Enes escreve que o governo não podia dar aos indígenas “como presente, retribuição de trabalho ou por outro qualquer título, excepto em tempo e serviço de campanha” quaisquer bebidas alcoólicas; a recomendação finaliza com uma proposta, a de que o Governo convidasse “os agricultores do Continente a prepararem e fornecerem-lhe amostras de tipos de vinho que possam ter fácil consumo em Moçambique, por agradarem ao paladar dos indígenas, aconselhando-os a destinarem para esse consumo os vinhos brancos ordinários de elevada graduação alcoólica e fortemente açucarados”.
Apenas – e por pudor – não se transcrevem outros excertos desse relatório sobre o Caminho de Ferro de Angola, um dos mais cruéis e destemperados cartazes de incitação à exploração da população negra; verdade é que na propaganda oficial, oficiosa e particular, se procurava disseminar a ideia de que as nações europeias tinham como missão levar a África o facho da Civilização, quadro que contava com o apoio da presença de missionários católicos e também de protestantes que propagandeavam a fé cristã e as virtudes dessa mesma Civilização, mesmo que não poucas vezes se batessem em prol dos “índigenas” e contra o desbragamento das leis e práticas administrativas das chamadas “possessões” africanas; no caso da possessão da costa oriental – ainda, segundo António Enes – deveria a presença da Igreja Catílica congregar-se num “instituto subordinado ao governo português e à prelazia da diocese de Moçambique, destinado a congregar e a habilitar pessoal para os serviços eclesiásticos, para a propaganda religiosa e moral e para o professorado primário nessa diocese”, fazendo desde logo a reserva de que não teria “capacidade jurídica para possuir por qualquer título propriedade imobiliária” e de que não poderiam usar no seu ministério “outros idiomas além do latim canónico, que não sejam o português e as línguas indígenas da província de Moçambique”. Esta é uma questão, a da Língua Portuguesa” a que obrigatoriamente terei de voltar.
As recomendações do acima citado Relatório de Obras Públicas… constituem um brutal ultraje, um crime contra as populações negras que não tinham como defender-se nem encontravam quem os protegesse dos desmandos dos primeiros colonos, um mundo em que tinham parte muitos condenados a degredo pela justiça portuguesa.
Há ainda que recordar o facto de este tipo de extorsão se ter praticado durante todo o período colonial, ao mesmo tempo que desde os primeiros tempos da concretização da ocupação dos diversos territórios se aplicava o “imposto de palhora e mussoco” referidos num outro relatório, o de António Enes a que farei referência por mais de uma vez.
Lourenço Marques até finais dos anos 40 do século passado mais não era do que uma pequena urbe construída segundo dois planos: a “cidade velha” – a que mais tarde se chamaria “a Baixa” – e um segundo que se espraiaria pelos diferentes bairros da cidade alcandorando-se pelos matos e que com o avançar dos anos estabeleceu os diferentes patamares da sociedade “laurentina”, depois alcunhada “cocacola” que acolhia um número apreciável de cidadãos estrangeiros. Foi esta a lógica que lançou os alicerces dos bairros da Polana, Carreira de Tiro, Maxaquene, Alto Maé, Malhangalene e Xipamanine, sendo que nos arruamentos deste e traçados na continuação do bairro popular chamado de Alto Maé residiam populações brancas – muito especialmente oriundos de Portugal, alguns dos quais se tinham adaptado à vivência negra e de quem se dizia desdenhosamente que estavam “cafrealizados” -, mestiças, indianos islâmicos – maioritariamente originários da parte da Índia britânica que em 1947 formou o Paquistão, mas também chinas… Também crescera um outro arrabalde, a Munhuana, que se tornaria célebre nos anos 50 e 60 porque aí na sua Maternidade de S. José nasceram amparados por freiras ??? uma boa parte das últimas gerações coloniais portuguesas.
Só mais tarde é que a Sommerschield tomou forma e ganhou nas conversas locais a aura de um bairro de gente enricada – um conceito muito discutível pois que se tomavam por gente de meios aqueles muitos que tinham um ordenado acima da média dos pequeno-burgueses que fizeram a cidade apoiados por uma mão de obra barata e sem protecção estatal. A Sommerschield mais não era do que um amontoado de vivendas instaladas em terrenos minorcas em que o volume da construção afogava a dimensão do terreno, mas também inúmeras casas em banda, tudo isto concentrado em arruamentos estreitos o que tirava qualquer beleza ao aglomerado e complicava o trânsito. Chegava-se à Sommerschield por uma avenida larga em que pontificava a Cadeia de Lourenço Marques enquanto quase ao centro do bairro se situava um edifício desmesurado – o Prédio Bucelatto – em volume e altura em que para além de andares para habitação se localizavam dois dos organismos com que o regime colonial procurou obstar ao que já era inevitável, a Independência: os “Serviços de Acção Psicosocial” e a “Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Moçambique”, esta última chefiada por militares e que durante muitos anos teve no topo Ilídio Trindade, coronel na Reserva, creio; era um homem discreto, correcto, seco, quase esquelético, sendo por esta última característica conhecido como “o fantasma da Ópera”. Nunca o ouvi falar, sequer sorrir.
No morro da Polana – terras vermelhas, um esplendor que contrastava com a matéria arenosa da praia da Polana que se estendia por cerca de 15 quilómetros até à Costa do Sol cujo restaurante servia desde os anos ? os mais deliciosos e apicantados mariscos que se pode imginar, tudo regado com a fresca e não menos deliciosa cerveja “Laurentina”, um das produções industriais da cidade que regalava muita e boa gente desde 1932 e que tinha uma cervejaria a funcionar na antiga “Fábrica” .
Da Polana descortinava-se o esplendor da Baía de Todos os Santos e ocasionalmente, na fímbria da distância, uma das Ilhas Xefinas em que se acantonava uma instalação militar – um bairro de vivendas, maiores ou menores, todas com jardim e quintal e raros prédios com mais de um andar; aí se situava, igualmente, a Residência do governador da colónia – cuja primeira pedra fôra colocada pelo Príncipe Real D. Luís Filipe quando em 1907 fizera o périplo das colónias portuguesas de África -, a do governador do distrito, a Secretaria Geral do governo, o Hotel Polana – construído em 19? numa posição privilegiada, dominando o sortilégio da baía, localizado a dois passos do “Caracol”, a rua estreita que em acordo com o nome corria em espiral cerrada até à praia e onde uma tribo gesticulante de pequenos macacos se chegava aos carros que desciam cautelosamente pedindo as bananas, os amendoins e as maçarocas que os “laurentinos” usualmente lhes propiciavam.
O “Caracol” permitia que os citadinos se sentissem como que enfronhados nos cafundós do mato, julgando sentirem-se mais directamente a vivência africana. O “Caracol” – deve ter tido um nome em homenagem a qualquer um ou a um qualquer – nascia junto do “Miradouro Lisboa”, um espaço que não sei porquê sempre associo ao “Miradouro de Santa Luzia ? em Lisboa, desdobrava o olhar de quem aí parava com a magnificência dos azuis, turquezas e verdes das águas do Índico e os cenários carregados de orientes que o firmamento oferecia quando o pôr do sol chegava: tons de laranja sobre telas em fogo, vermelhões como sangue de dragão desmanchando as cortinas de amarelo torrado que se perdiam na lonjura rósea ou em carmins de japoneira, uma explosão de cor e de luz que deixava os corações parados, aguardando ansiosamente que esse entardecer ficasse como um vitral eterno na memória visual e como a emoção do apelo ao fascínio da Natureza.
Mais próximo dos edifícios do Governo, no outro lado da Polana, mais virado para o porto – o íman citadino – encontrava-se outro hotel de prestígio mas que nunca afrontou a soberania do “Polana”, o “Hotel Cardoso”, da família ? A realidade é que não havia uma sequer possibilidade de comparação, não só no volume da construção e magnificência da construção mas principalmente pela arquitectura vulgar do “Cardoso”, uma manifestação de falta de elegância e cuja fachada bem poderia ser a de um prédio de rendimento, como tantos outros que se foram construindo em Lourenço Marques.
Na rua do “Miradouro” – chamada, do Duque, Artur?, da Duquesa, Luísa?, de Connaught, um dos filhos e nora da Rainha Vitória, a Imperatriz das Índias e Avó da realeza europeia, casal que visitou Lourenço Marques em 1910 – do seu lado, já descendo para a zona dos aquartelamentos ficava uma única casa de alvenaria, já um pouco desbotada pela idade. Era o casarão em que viviam os meus Avós, uma casa com uma estrutura quase quadrada que tinha um magnífico quintal com árvores frutíferas em que se destacavam imponentes mangueiras, abacateiras e papaieiras; no jardim fronteiro à moradia, os meus avós esmeravam-se no cultivo de magnólias, rosas (de todas as gradações de cor, desde a branca e a rosa até às vermelhas côr de sangue) e camélias, estas, as japoneiras, ora de delicada cor de carmim ora de um branco imaculado, postais de memórias que ainda preservo como delicadas lembranças.
No interior da casa, na varanda que abria para o corredor que de alto a baixo dividia quartos e salas e terminava na copa de uso diário, junto à cozinha suficientemene espaçosa para fornecer alimentação aos 7 filhos e sua descendência, vicejavam esplendorosos fetos de folhas largas e pequenas ? delicadas bem como avencas que cresciam sem pedir licença a quem cuidava deles, exigindo, porém, o seu afecto; cresciam, quase espontaneamente, alargando e crescendo a folhagem em diferentes cambiantes de verdes, desses verdes esplendorosos e fascinantes como apenas se encontram na natureza tropical.
Não era esse, porém, o maior encanto da casa e do terreno à sua volta: o quintal terminava no inevitável muro que delimitava a pequena propriedade que o Avô tinha alugado e terminava porque aí começava a íngreme descida do barrocal que levava à “marginal” que tinha do outro lado o Clube Naval que manteria o brado pelos chás dançantes – com orquestra, pois claro -, aos dias de praia e de cavaqueira, o mais das vezes vazia de conteúdo e de objectivos, mas também das malvadezas comuns nesse tipo de conversatas a eito e sem jeito, dos praticantes da arte da Vela e dos mergulhos nas águas salgadas. Nunca consegui imaginar o que poderia ter acontecido se os miúdos da casa e os vizinhos, capitaneados pelos meus tios mais novos, o A. e o C., desciam desabaladamente as barrocas, soltando brados à cow-boy e à índio; perigo e berraria assim só acontecia nas “matinés” do Scala. Felizmente (que eu saiba) nunca aconteceu nada de mais, para além de arranhões, esfoladelas e entorses!
Mais tarde, os meus Avós que sempre viveram desafodamente construiram – em resultado de uma benção extra-terreste – a sua casa na Av. Brito Camacho, poucos talhões abaixo do “Hotel Girassol”, uma construção redonda da família Sousa que começara o negócio hoteleiro muitos anos antes e que também possuía o “Hotel Avenida” na Baixa da cidade. A nova casa dos meus Avós deveu-se a dois acontecimentos curiosos: em 1947, quando o meu Avô atingiu o limite de idade e se reformou da função de agrimensor da Câmara Municipal da cidade, o conhecimento generalizado e na presidência da Câmara de que se tratava de funcionário que nunca talhara nenhum pedaço de terra para si, nem sequer constasse qualquer zum-zum sobre corrupção, decidiu a Câmara a oferta de um seu talhão localizado numa das zonas nobres da cidade, um terreno que proporcionava um panorama privilegiado sobre a Baía do Espírito Santo, alcançando à esquerda a vastidão oceânica e à direita a actividade tumultuosa da vida portuária; coincidiu esse facto com um outro de igual cariz: saíu-lhe a Sorte Grande, nessa época em contos de réis, “fortes”, acrescento eu. Não se ficou por aqui o sortudo Avô; o cauteleiro vendera-lhe o bilhete inteiro e insistira para que comprasse o outro bilhete que lhe restava pois estava quase na hora do sorteio. Não me recordo do “número da sorte” mas creio que terá sido o 610 enquanto o outro bilhete tinha o 611! A roda da fortuna deu-lhe, pois, o 1º prémio que suponho terá sido de 600 contos e uma das aproximações, mais 10 contos!
Construíu uma casa bifamiliar, de 3 pisos – o rés-do-chão para alugar a uma das filhas, o 1º e o 2º para viver. É uma casa desafogada, espaçosa mas mal dividida e com uma fachada de meter medo ao susto; desenhada pelo mais velhos dos filhos varões, o Z., de Zeca, desenhador de construção civil da Câmara Municipal, tem uma varanda que se apresenta como a ponte de comando de um barco, um horror inestético, um mau gosto em V mas um V deitado, uma coisa inexplicável! Mesmo ao lado da antiga Residencial Marlin. Hoje, o lustro dos anos empresta-lhe alguma solenidade, muito vagamente Deco.
Aposentação, terreno e “sorte grande”, deixaram-no livre para o que sempre lhe agradava; cuidar das rosas e das magnólias do jardim, mas, muito principalmente, ir para a “machamba” lá para os lados de Goba – pela estrada, a c. de Kms de Lourenço Marques – e onde gostava de olhar pelo gado que tratava com desvelo. Como nunca tirou carta de condução um dos filhos gémeos, o C., conduzia-o numa automóvel e era vê-lo feliz, mesmo que pouco sorridente, quando regressava ao domingo do seu fim de semana.
Era a costela de lavrador que continuava a falar, desde que deixara a terra natal, Oliveirinha do Bairro (Anadia), para seguir como professor num contingente militar que terá aportado a Lourenço Marques por volta de 1910.
O Acaso?, o Destino?, Deus?
Como republicano da velha guarda, casara-se, apenas pelo civil em 1912 e creio que nunca tinha acertado as contas com a divindade, apesar de ter enviado as 4 filhas para estudarem num colégio de freiras irlandesas (?) em Ermelo na África do Sul que recebia e instruía, além de raparigas portuguesas, igualmente inglesas, sul-africanas, sírias, judias, libanesas, etc. Essa jovens adolescentes em flor, viajavam acompanhadas nas épocas de férias entre Ermelo e Lourenço Marques, numa carruagem do combóio que diariamente ligava o porto da capital da colónia à cidade rainha do ouro, do carvão e dos diamantes. Segundo a tradição que recolhi entre familiares e gente com quem se convivia há muitas dezenas de anos as raparigas cresciam em harmonia e beleza; logo, os rapazes que as viam despontar como flores apetecíveis, passaram a apelidar o colégio – convento de Ermelo como a “Universidade do Marmelo”; aí, as estudantes frequentavm aulas de língua e literatura inglesa, de matemática, de ciências da natureza, de desenho, de pintura, de ténis – um must social da época – e igualmente de piano e de violino com prémios de referência do Conservatório da África do Sul.